segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O lapso no limbo


...desce as escadas da clínica a passos nervosos, quem vê pensa se tratar de desabalada fuga. Na verdade, é uma busca, anseia um lugar sem ninguém por perto, não quer que vejam sua reação, qual seja; se choro convulsivo, se riso histérico, não importa, o que quer é rasgar essa página de sua vida, apagá-la completamente. Um par de olhos, mesmo estranho, é uma testemunha, argumenta para si. Quem garante que tais olhos hoje estranhos não possam ser conhecidos amanhã, puxa, como você estava feliz aquele dia, era você no Solar, não? vamos, me conta a novidade, diria, ou, não era você o cara que eu vi chorando na praça do Solar? o que aconteceu, quem sabe possa ajudar. Não! Não quer ajuda. Quer é ficar sozinho, só isso. Anda apressado, desviando dos demais, tá cego ô babaca, ouve a voz que fica para trás, o ombro direito levemente dolorido pelo choque, dá-se conta da mão vazia, volta, outra mão lhe estende o envelope, toma moço caiu isto enquanto... obrigado. Vira-se e continua a busca por uma clareira. Para um instante, de assalto lhe vem a infância, os risos, o sol de um intenso diferente, um mundo de cores vivas diverso do atual, cores radiantes, um mundo onde tudo parecia eterno, as brincadeiras imitando a vida adulta, depois, a adolescência rubra, as dúvidas, as descobertas solitárias, insólitas ramificações da deliciosa sordidez de um mundo de pulsões... Então vê uma ruela que lhe apaga as imagens desconexas, a ruela que agora é seu chão, e com passos ainda nervosos, mas firmes, segue até ela. Ao chegar, percebe se tratar de uma estreita rua que dá nos fundos de uma loja, seria o lugar ideal não fosse o risco de aparecer algum funcionário para furtivamente fumar seu cigarro, mas teria que ser ali, seria difícil encontrar uma clareira naquela cidade. O envelope umedecido pelo suor da mão, levou-o ao peito e, recostando o corpo na parede úmida, vê o céu estreitado pelos prédios, a boca aflita sugando a atmosfera fria da manhã e expelindo o calor do corpo na forma de vapor, volta-lhe a angustiante condição. Relembra algumas aventuras e que nunca se cuidara, os avisos temerosos, agora poderia ser tarde, mas também, ao contrário, poderia ser o recomeço, sim seria, decide. Pensa em Norminha, conheceram-se há um mês, no início era uma brincadeira, agora se via apaixonado. Sente-se culpado por não dividir essa dor com ela, envolvida sem nem imaginar. O que faria se o pior acontecesse? Só ele sabia que o futuro deles estava represado em um pedaço de papel: aí é que estava seu maior medo. Dentro do envelope, a condenação ou a redenção: fecha os olhos, sente e ouve o papel sendo rasgado, cedendo à...

− Ô, Heitor. Disse a mãe. Vem me ajudar com as compras!
Os olhos nublados, como se por horas ao sol, súbito tivesse entrado em um ambiente de luz artificial, fraca, sentiu uma leve vertigem. Nem marcou o livro, não precisava, deixou-o ali deitado no sofá. Completamente absorto pela leitura, não teria como recuar, porém, outra história o chamava.

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