sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Apego

Quando se anda sob corda bamba
De olhos fechados apenas e só
Sentindo o abismo derramado sob os
pés

E, então?

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

O lapso no limbo


...desce as escadas da clínica a passos nervosos, quem vê pensa se tratar de desabalada fuga. Na verdade, é uma busca, anseia um lugar sem ninguém por perto, não quer que vejam sua reação, qual seja; se choro convulsivo, se riso histérico, não importa, o que quer é rasgar essa página de sua vida, apagá-la completamente. Um par de olhos, mesmo estranho, é uma testemunha, argumenta para si. Quem garante que tais olhos hoje estranhos não possam ser conhecidos amanhã, puxa, como você estava feliz aquele dia, era você no Solar, não? vamos, me conta a novidade, diria, ou, não era você o cara que eu vi chorando na praça do Solar? o que aconteceu, quem sabe possa ajudar. Não! Não quer ajuda. Quer é ficar sozinho, só isso. Anda apressado, desviando dos demais, tá cego ô babaca, ouve a voz que fica para trás, o ombro direito levemente dolorido pelo choque, dá-se conta da mão vazia, volta, outra mão lhe estende o envelope, toma moço caiu isto enquanto... obrigado. Vira-se e continua a busca por uma clareira. Para um instante, de assalto lhe vem a infância, os risos, o sol de um intenso diferente, um mundo de cores vivas diverso do atual, cores radiantes, um mundo onde tudo parecia eterno, as brincadeiras imitando a vida adulta, depois, a adolescência rubra, as dúvidas, as descobertas solitárias, insólitas ramificações da deliciosa sordidez de um mundo de pulsões... Então vê uma ruela que lhe apaga as imagens desconexas, a ruela que agora é seu chão, e com passos ainda nervosos, mas firmes, segue até ela. Ao chegar, percebe se tratar de uma estreita rua que dá nos fundos de uma loja, seria o lugar ideal não fosse o risco de aparecer algum funcionário para furtivamente fumar seu cigarro, mas teria que ser ali, seria difícil encontrar uma clareira naquela cidade. O envelope umedecido pelo suor da mão, levou-o ao peito e, recostando o corpo na parede úmida, vê o céu estreitado pelos prédios, a boca aflita sugando a atmosfera fria da manhã e expelindo o calor do corpo na forma de vapor, volta-lhe a angustiante condição. Relembra algumas aventuras e que nunca se cuidara, os avisos temerosos, agora poderia ser tarde, mas também, ao contrário, poderia ser o recomeço, sim seria, decide. Pensa em Norminha, conheceram-se há um mês, no início era uma brincadeira, agora se via apaixonado. Sente-se culpado por não dividir essa dor com ela, envolvida sem nem imaginar. O que faria se o pior acontecesse? Só ele sabia que o futuro deles estava represado em um pedaço de papel: aí é que estava seu maior medo. Dentro do envelope, a condenação ou a redenção: fecha os olhos, sente e ouve o papel sendo rasgado, cedendo à...

− Ô, Heitor. Disse a mãe. Vem me ajudar com as compras!
Os olhos nublados, como se por horas ao sol, súbito tivesse entrado em um ambiente de luz artificial, fraca, sentiu uma leve vertigem. Nem marcou o livro, não precisava, deixou-o ali deitado no sofá. Completamente absorto pela leitura, não teria como recuar, porém, outra história o chamava.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Machado de Assis em Esaú e Jacó

“[...] o tempo é um rato roedor das cousas, que as diminui ou altera no sentido de lhes dar outro aspecto. [...] Há, nos mais graves acontecimentos, muitos pormenores que se perdem, outros que a imaginação inventa para suprir os perdidos, e nem por isso a história morre.”

quinta-feira, 25 de junho de 2009

O Quinze



Ao abordar uma obra consagrada pela crítica, pelos anos, por sua inegável beleza, gostaria de fugir do óbvio: a questão trágica dos retirantes nordestinos. Tanto que essa questão é tratada em O Quinze não de modo nuclear, mas sim, paralela a outra: a escassez de comunicação que há entre Conceição e Vicente, o abismo que separa a mulher letrada do matuto sertanejo, condição que inviabiliza a união amorosa entre eles, mesmo cada um sabendo do amor que sente pelo outro. O que pretendo abordar é o sentido do número “quinze” em suas diferentes aparições dentro do romance de Rachel de Queiroz.


Apenas para relembrar, de modo sucinto, a questão dos retirantes surge na história de Chico Bento e sua família, que são forçados a procurar outro lugar para viver já que, por conta da seca, Dona Maroca, proprietária da fazenda onde ele trabalha, abriu as porteiras, decidiu desistir de lutar contra a seca liberando o seu gado e seus funcionários a partirem. Chico Bento, vendo-se obrigado a encontrar outro destino, decide ir para o norte, para o Amazonas, porém, esbarra na burocracia e na corrupção: não consegue obter as passagens, que o governo estava dando aos pobres, pois elas estariam sendo vendidas por um político da região.


Então, ele e sua família encaram a seca no que ela tem de mais cruel: decidem atravessar o sertão sob o sol inclemente, vivendo vários episódios extremos como a morte de um filho, intoxicado por comer uma mandioca crua, o desaparecimento de outro durante a viagem, entre outros mais. Ao chegarem à cidade, Duquinha, o caçula, é doado a Conceição, pois se continuasse com eles certamente morreria de desnutrição. Depois de vários percalços Chico Bento consegue a ajuda de Conceição, que lhe dá passagens de navio em direção a São Paulo. Assim termina a saga de Chico Bento e sua família em O Quinze, que constitui um dos planos da narrativa.


O outro é o que gira em torno da relação torta entre Vicente e Conceição. Os dois nutrem amor um pelo outro, não negam isso para si próprios, mas tentam frustrar a expectativa dos familiares que, não são bobos, sabem do amor que há entre os dois. O problema é que no tempo da narrativa há um distanciamento geográfico entre eles: Conceição vive na cidade enquanto Vicente se mantém no sertão. Só se encontram ou quando Vicente à cidade ou quando ela vai visitar sua tia Inaciana fazenda. O narrador menciona que os dois cresceram juntos e que na adolescência chegaram mesmo a namorar. Porém, a distância geográfica é ínfima se comparamos a outra distância que há entre eles: a distância cultural. Dessa distância, Conceição é que tem mais consciência, um abismo entre eles segundo a personagem, o que a deprime em certo momento do romance. Vicente até percebe a existência dessa distância, mas não com a acuidade da moça, afinal, além de iletrado ele é um homem em estado bruto por opção, em contraposição ao irmão que se tornou juiz, o qual ele nutre um sentimento ambivalente, que oscila entre o repúdio e uma admiração ressentida, quase invejosa.


Um episódio contribui muito para essa “falha” de comunicação entre eles: ao encontrar a mulata Chiquinha do Campo de Concentração esta conta a Conceição que Vicente estaria de namorico com a Zefa, filha de Zé Bernardo. A partir daí Conceição passa a tratar Vicente com aspereza, mesmo não tendo certeza se essa história é verdade. Mesmo não havendo nenhum compromisso entre eles, Conceição nutria a convicção de que era correspondida em seu amor, e passou considerar a atenção que Vicente lhe dava como galanteios que ele dispensava a qualquer mulher. A partir desse ponto, eles se perdem e se afastam cada vez mais: Vicente sem saber muito o porquê, chega a tachá-la de arrogante por conta ser intelectualizada; e Conceição com a consciência de que havia um abismo cultural intransponível entre eles, acaba desistindo desse amor.


O título dado ao romance de Rachel de Queiroz, como é bem sabido, refere-se à grande seca de 1915, sofrida pelo povo nordestino, sentida na pele pela própria escritora que se tornou também retirante, indo com sua família viver no Rio de Janeiro. Em um primeiro momento o título remete a essa seca, porém, ao que me parece, serve também de fio condutor do romance, pois surge, mesmo que discretamente, em momentos de decisão ou de ruptura dentro da narrativa.


"E afinal, quinze dias depois, Conceição conseguia arrastar Mãe Nácia, que desolada e chorando, era como uma velha estátua a quem roubam do pedestal, e carregam atabalhoadamente, na confusão de uma mudança feita às pressas."

Essa é a segunda aparição do quinze dentro da narrativa, se considerarmos o título do romance como a primeira, representando o tempo que Conceição levou para convencer Mãe Nácia a deixar o sertão por conta da seca. A senhora, extremamente apegada à sua terra, às suas crias, não se imaginava vivendo em outro lugar. Vemos então que o quinze surge num primeiro momento de importante de ruptura no romance, a decisão de Mãe Nácia em retirar, fugir da seca inclemente.

"O cigarro o envolvia em branco nevoeiro; Vicente foi recordando sua vida de trabalho ininterrupto, desde os quinze anos - trabalho de sol a sol, sem descanso e quase sem recompensa... Quantas vezes não sentira um movimento de revolta, quando via o pai mandar aumentar com custo, quase com sacrifício, a mesada do irmão acadêmico, e dar-lhe extraordinários para festas, para sabe lá que bambochatas de estudantes, disfarçadas em livros e matrículas..."

Nesse ponto do romance, é Vicente que traz à tona o quinze, lembrando que é desde os seus quinze anos que ele trabalha de sol a sol, que dedica toda a sua existência ao labor na fazenda da família, ao contrário do irmão que foi para a cidade estudar se formar em direito para nunca mais voltar. Em meio a tantas dificuldades diante da seca, de companheiros partindo para outros lugares, em meio à morte espreitando cada canto do sertão, Vicente se põe a refletir sobre a sua vida, comparando-a com a do irmão e sentindo-se injustiçado por, a seu ver, não lhe ser dado o mesmo valor que a família dava para o irmão. Imaginando ele ainda que os sucessivos pedidos de dinheiro que o irmão fazia alegando a necessidade de custear os estudos serviam na verdade para custear festas. É então nesse momento que Vicente expressa não apenas revolta, mas certo despeito e inveja do irmão doutor, uma inveja da inteligência dele, que Vicente transporta para Conceição.

"Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida, aquela carinhosa inteligência a acompanhá-lo. E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita."

Percebemos que aquilo que Vicente reprova e ao mesmo tempo inveja no irmão, deseja em Conceição. Como se conquistá-la fosse um modo de conseguir a inteligência que Paulo havia conquistado também. Vemos que novamente o quinze surge em um momento de tensão e ruptura no romance. É um instante de tomada de consciência e de reflexão sobre si mesmo do personagem Vicente.


A terceira vez que o quinze surge é para descrever o período decorrido para a recuperação de Duquinha, filho de Chico Bento adotado por Conceição.

"Quinze dias compridos e angustiados Duquinha levou para uma melhora sensível. Enfim já se sentava na rede e pegava com as mãos incertas a tigela de leite ou de caldo. E já não olhava a madrinha com a primitiva expressão assustada."

Nessa última aparição, o quinze traz consigo a redenção, a cura do menino que foi confiado a Conceição. Ela devolve a vida ao filho de Chico Bento, e ele de certa forma, devolve a vida a Conceição, que já se conformava em ser uma solteirona, abandonando definitivamente qualquer pretensão em relação a Vicente. É no menino que ela reencontra forças para continuar a viver apesar das adversidades, das dificuldades no trabalho de professora e no Campo de Concentração, além de ser sua companhia contra a solidão com o retorno de Mãe Nácia à fazenda.


Vemos o quanto o título acaba sendo um tipo de fio condutor da narrativa, evocando a seca de 1915 e iluminando momentos importantes da narrativa: a difícil decisão de Mãe Nácia fugir da seca, deixando tudo para trás; o confronto de Vicente consigo mesmo, e o desejo de se tornar um homem culto; e a vida que surge da adversidade, com a recuperação de Duquinha em quinze dias.

segunda-feira, 20 de abril de 2009

Ruminações no bonde



É interessante como às vezes ocorrem encontros inusitados, e talvez até não sonhados, entre escritores antípodas, que se encontram temporalmente ou geograficamente em posições opostas: enfatizo que isto se dá em relação ao tempo e ao lugar, porque é literariamente se encontram. Um exemplo poderia ser o caso do encontro entre Drumnond e Kafka. Drumond com seu poema E agora José?, e Josef, protagonista de O Processo, que parece se perguntar desde o início do livro: e agora? O que faço? Um encontro desses seria intencional? Teria Drumond lido Kafka?


Pode ser que sim, pois o poema de Drummond foi lançado em 1942, enquanto o Processo veio à luz em 1925. Porém, até hoje não li nada a respeito de o poeta itabirano ter lido Kafka.
Estava pensando, ou melhor, ruminando, sobre a epígrafe que acolhi para este blog e me lembrei de uma palestra que assisti do Silviano Santiago, no qual ele mencionou a confluência do ruminar de Nietzsche e de Machado de Assis. Não lembro exatamente o que ele dizia a respeito dessa confluência, mas essa ideia ficou em mim incubada. Pois que, como hoje temos a sorte de possuir meios de pesquisa extremamente rápidos, corri ao Google e lá digitei a minha pesquisa. Eis que me surgem ávidas as palavras machadianas:


“Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a idéia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a idéia fica íntegra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.”


Esse é um trecho de uma crônica de Machado de Assis, escrita em 1889. Além de grande romancista, Machado era também um exímio cronista, e sua crônica Meditações no bonde é um ótimo exemplo de sua genialidade também nesse gênero.


Obviamente que há diferenças sobre o ruminar do discípulo de Dionísio e o do Bruxo de Cosme Velho: o primeiro refere-se ao ato de ruminar leituras enquanto o segundo ao ato de ruminar durante a espera dentro de um bonde. Porém, o que há de comum nos dois atos de ruminar é o seu caráter reflexivo, que vai de encontro com a modernização e seu caráter imediatista. Já naquela época, durante o século XIX, estava em curso o processo de industrialização e modernização que viriam a culminar nos avanços tecnológicos do século XX. Nietzsche se coloca em posição contrária ao que ele chama de homem de fim-de-século, que perdeu sua faculdade de ruminar, enquanto Machado de Assis destaca que enquanto pensa, rumina, suas ideias são mais genuínas, mais profundas, sem interferências, ao contrário do que aconteceria se ele se exprimisse por meio da fala. Machado não levou em conta ainda, o filtro do interlocutor, como o ouvinte recebe, “peneira”, aquilo que já sai “peneirado”, conforme as palavras do próprio Machado.


Agora, teria Machado de Assis lido Nietzsche ou vice-versa? Não. Esse caso, é um exemplo feliz de intertextualidade fruto de coincidência. Acho que por não ser intencional, por ser coincidência, nem se trata mesmo de intertextualidade. A crônica de Machado de Assis foi escrita em 21 de Janeiro de 1889 enquanto o prefácio de Nietzsche para o seu A Genelogia da Moral, em XXXX.
Mas o mais interessante e que eu gostaria de deixar em destaque são as... coincidências– o fato de que realmente pode haver mais coisas entre o céu e a terra do que desconfia nossa vã filosofia.
Abaixo, segue a crônica de Machado de Assis na íntegra:


Meditações no bonde

Bons dias!


Vi, não me lembra onde...


É meu costume, quando não tenho que fazer em casa, ir por esse mundo de Cristo, se assim se pode chamar à cidade de São Sebastião, matar o tempo. Não conheço melhor ofício, mormente se a gente se mete por bairros excêntricos; um homem, uma tabuleta, qualquer basta a entreter o espírito, e a gente volta para casa "lesta e aguda", como se dizia em não sei que comédia.


Naturalmente, cansadas as pernas, meto-me no primeiro bond, que pode trazer-me à casa ou à Rua Ouvidor, que é onde todos moramos. Se o bond é dos que têm de ir por vias estreitas e atravancadas, torna-se verdadeiro obséquio do céu. De quando em quando, pára diante de uma carroça que deseja ou recolhe fardos. O cocheiro trava o carro, ata as rédeas, desce e acende cigarro; o condutor desce também e vai dar uma vista olhos ao obstáculo. Eu, e todos os veneráveis camelos da Arábia, vulgo passageiros, se estamos dizendo alguma coisa, calamo-nos para ruminar e esperar.


Ninguém sabe o que sou quando rumino. Posso dizer, sem medo de errar, que rumino muito melhor do que falo. A palestra é uma espécie de peneira, por onde a idéia sai com dificuldade, creio que mais fina, mas muito menos sincera. Ruminando, a idéia fica íntegra e livre. Sou mais profundo ruminando; e mais elevado também.


Ainda anteontem, aproveitando uma meia hora de bond parado, lembrou-me não sei como o incêndio do club dos Tenentes do Diabo. Ruminei os episódios todos, entre eles os atos de generosidade da parte das sociedades congêneres; e fiquei triste de não estar naquela primeira juventude, em que a alma se mostra capaz de sacrifícios e de bravura. Todas essas dedicações dão prova de uma solidariedade rara, grata ao coração.


Dois episódios, porém, me deram a medida do que valho, quando rumino. Toda a gente os leu separadamente; o leitor e eu fomos os únicos que os comparamos.


Refiro-me, primeiramente, à ação daqueles sócios de outro club, que correram à casa que ardia, e acudindo-lhes à lembrança os estandartes bradaram que era preciso salvá-los, "Salvemos os estandartes!" e tê-lo-iam feito, a troco da vida de alguns se não fossem impedidos a tempo. Era loucura, mas loucura sublime. Os estandartes são para eles o símbolo da associação, representam a honra comum, as glórias comuns, o espírito que os liga e perpetua.


Esse foi o primeiro episódio. Ao pé dele temos o do empregado que dormia, na sala. Acordou este, cercado de fumo, que o ia sufocando e matando. Ergueu-se, compreendeu tudo, estava perdido, era preciso fugir. Pegou em si e no livro da escrituração e correu pela escada abaixo.


Comparei esses dois atos, a salvação dos estandartes e a salvação do livro, e tereis uma imagem completa do homem. Vós mesmos que me ledes sois outros tantos exemplos de conclusão. Uns dirão que o empregado, salvando o livro, salvou o sólido; o resto é obra de sirgueiro. Outros replicarão que a contabilidade pode ser reconstituída, mas que o estandarte, símbolo da associação também a sua alma; velho e chamuscado, valeria muito mais que o que possa sair agora, novo de uma loja. Compará-lo-ão à bandeira de uma nação, que os soldados perdem no combate, ou trazem esfarrapada e gloriosa.


E todos vós tereis razão; sois as duas metade homem, formais o homem todo... Entretanto, isso que fica dito está longe da sublimidade com que o ruminei. Oh! se todos ficássemos calados! Que imensidade de belas e grandes idéias! Que saraus excelentes! Que sessões de Câmara! Que magníficas viagens de bond!


Mas por onde é que eu tinha principiado? Ah! uma coisa que vi, sem saber onde...


Não me lembra se foi andando de bond; creio que não. Fosse onde fosse, no centro da cidade ou fora dela. Vi, à porta de algumas casas, esqueletos de gente, postos em atitudes joviais. Sabem que o meu único defeito é ser piegas; venero os esqueletos, já porque o são, já porque o não sou. Não sei se me explico. Tiro o chapéu às caveiras gosto da respeitosa liberdade com que Hamlet fala à bobo Yorick. Esqueletos de mostrador, fazendo gaifonas sejam eles de verdade ou não, é coisa que me aflige. Há tanta coisa gaiata por esse mundo, que não vale a pena ir ao outro arrancar de lá os que dormem. Não desconheço que esta minha pieguice ia melhor em verso, com toada de recitativo ao piano; Mas é que eu não faço verso; isto não é verso:


Venha o esqueleto, mais tristonho e grave,
Bem como a ave, que fugiu do além...


Sim; ponhamos o esqueleto nos mostradores, mas sério, tão sério como se fosse o próprio esqueleto do nosso avô, por exemplo... Obrigá-lo a uma polca, habanera, lundu ou cracoviana... Cracoviana? Sim, leitora, amiga, é uma dança muito antiga, que o nosso amigo João, cá de casa, executa maravilhosamente, no intervalo dos seus trabalhos. Quando acaba, diz-nos sempre, parodiando um trecho de Shakespeare: "Há entre a vossa e a minha idade, muitas mais coisas do que sonha a vossa vã filosofia".


Boas noites.

21/jan./ 1889

segunda-feira, 6 de abril de 2009

Layne Staley


Achei que seria interessante fazer mais um comentário a respeito do último dia 5 de abril, que trouxe à tona vários textos na Internet lembrando os 15 anos de morte de Kurt Cobain. No mesmo dia 5 de abril, só que de 2002, morria, também em Seattle, Layne Thomas Staley, ou simplesmente Layne Staley, vocalista do Alice in Chains, outra grande banda da safra dos anos 90.

No post anterior eu havia dito que, na minha opinião, o grunge foi sepultado junto com Kurt Cobain. Há quem defenda que ele tenha acabado de verdade somente com a morte de Layne Staley. Bom, apesar de gostar do trabalho do Alice in Chains, mantenho minha opinião. Depois do fim do Nirvana, com a morte de Kurt Cobain, o “movimento” grunge iniciou sua declínio. Não quero dizer que se o Kurt não tivesse se suicidado o grunge estaria vivo até hoje, obviamente que um dia ele acabaria. Apenas penso que a morte dele serve como fato mais simbólico desse fim.

Agora, que é intrigante a coincidência de Layne Staley ter morrido no mesmo dia que Kurt, isso é. Ele foi encontrado, com o corpo já em estado avançado de putrefação, no dia 20 de abril, mas a perícia confirmou o dia 5 como o dia de sua morte. Staley morreu de overdose de heroína, após muitos anos de vício e de luta contra ele. Ao contrário do Nirvana que acabou, o Alice in Chains foi retomado pelo guitarrista e amigo de Staley, Jerry Cantrell, com William DuVall no vocal.

domingo, 5 de abril de 2009

15 anos da morte de Kurt Cobain





Hoje, faz quinze anos que Kurt Cobain se suicidou. Indubitavelmente, ele foi não apenas o líder do Nirvana, mas o líder de toda uma revolução musical e cultural, mesmo que sem sua total intenção, afinal ele é o músico mais niilista que já passou pelo mainstream. Não li muita coisa a respeito da vida de Kurt e da trajetória do Nirvana, mas acredito que não havia uma intenção, uma busca pelo sucesso que eles alcançaram. É óbvio que eles buscavam algum reconhecimento, grana, sucesso etc. Mas, acho que eles não queriam exatamente as glórias de estar no topo das paradas, e acabaram sucumbindo às agruras de lá estar.

Bom, mas falando de forma subjetiva, sobre a minha própria experiência de estar no olho do furacão dos anos 90, o que lembro de 15 anos atrás, é que eu estava na rua, fazendo não me lembro exatamente o que, com certeza vadiando, quando um amigo chegou com a notícia. Foi estranho, pois na verdade eu mesmo não era um fã. Gostava do Nirvana, como de muitas outras bandas, já era muito floydiano pra mergulhar na zoeira sonora deles. Porém o que me lembro foi da sensação de viver ainda em uma época em que os heróis da juventude morriam cedo: de overdose, por suicídio etc. Todos mortos por algo bem maior que eles, do qual eles não tinham controle, mas que de certa forma estava dentro deles mesmos.
Como eu era apenas um pré-adolescente, fui perceber o significado daquele momento apenas muito tempo depois. Assim como Kurt Cobain acabou com o rock cheio de frescuras, também sepultou naquele dia o tal do grunge que havia inventado. Muitas bandas surgiram influenciadas pelo Nirvana e duraram anos após o fim da banda de Seattle, mas eu particularmente acredito que o grunge acabou naquele dia 5 de abril de 1994.

quarta-feira, 1 de abril de 2009

E adeus leitura.

Eu postei o texto abaixo no blog do meu myspace. Para quem quiser dar uma conferida, o endereço é: www.myspace.com/cledes
Ruídos e mais ruídos por toda parte. Não conseguimos mais alcançar o silêncio, o espaço que antes era nosso, já não é mais. A frase-clichê dita por não sei quem, sua liberdade vai até onde começa a minha perdeu o sentido há tempos no vácuo contemporâneo. Essa é a vida em rebanho. – Começo a explicar.
Antigamente, ao caminhar por aí, seja com destino, seja a esmo, eu percebia alguns senhores com suas máquinas motorizadas compartilhando o seu gosto musical, diga-se de passagem, péssimo, com o resto do rebanho. Muito altruísmo da parte deles. O interessante é que a qualidade musical das ondas que reverberavam desses automóveis não acompanhava proporcionalmente a parafernália composta por subufers, cornetas, 6985’s etc, coisa e tal. Resumindo: quanto mais potente o som, mais pobre o tipo de música que se ouvia, e ainda se ouve. – Ok. Estou chovendo no molhado.Acontece que, hoje, parece que esse comportamento extrapolou os limites dos vidros automotivos. O advento tecnológico permitiu a substituição do antigo walkman e seu primo-rico, o discman, pelos mp3, 4, 5... e pelos i-podes, i-phones etc e tal, além dos celulares que permitem que nos deleitemos com música, boa ou ruim, em nossas viagens diárias em busca da caça nossa de cada dia. O problema é que, como disse acima, aquele comportamento de ouvir música em volumes ensurdecedores extrapolou o espaço “privado” dos automóveis. Hoje, sentado em algum banco de algum ônibus, ao tentar ler você pode ser surpreendido pelo martelar lancinante de um subufer, do carro que parou no sinal, ao lado do ônibus. Mas esse carro provavelmente ultrapassará o seu ônibus e irá incomodar outras paragens, menos mal. O problema maior é que na próxima parada, poderá embarcar algum ser com seu radinho, provavelmente tocando algum hit do momento, deprimente, a lhe incomodar durante todo o resto da viagem. E, adeus leitura.

terça-feira, 31 de março de 2009

A prova cabal de que Fake Plastic Trees e Creep entraram em última hora no set-list, provavelmente por conta do clima do show. Porém, é a prova também de que Street Spirit e Planet Telex sairam. Uma pena.

Catarse coletiva


Já dizia Goethe que quando se deseja muito algo o universo todo conspira a favor. O Brasil queria Radiohead e eles queriam o Brasil, o resto ficou por conta do universo. É o que se pode dizer sucintamente sobre a catártica segunda apresentação da banda inglesa no Brasil, em São Paulo, no último dia 22. A respeito de catarse, termo que será recorrente neste texto, utilizo-me da sua acepção, do Houaiss, no que diz respeito à estética aristotélica como uma “descarga de desordens emocionais ou afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo teatro, música e poesia”. Pois é exatamente isso o que aconteceu naquele domingo: uma intensa descarga emocional e de afetos desmesurados provocados pela experiência musical radioheadiana dentro de cada um que ali, naquela chácara.
Eu nunca cheguei a pensar que fossem exageradas as resenhas que já tinha lido a respeito de shows do Radiohead, no exterior, nas quais muitos críticos chegam a comparar o Radiohead ao Pink Floyd pré-Dark Side. Mas, se não cheguei a duvidar da magnitude dos shows dessa banda inglesa, também não tinha uma noção exata dessa experiência. Claro que, na saída, quando todos ainda estavam atordoados, ouvi comentários tanto elogiosos, como lamentosos, por uma ou outra música ter ficado de fora do set-list. Obviamente que eu também pensava, enquanto caminhava em meio à multidão, em uma ou outra canção que eu desejava muito ouvir, mas cheguei à conclusão de que o impacto desse show foi tão grande que compensou qualquer ausência. E, pensando bem, seria difícil chegar a um consenso a respeito de um set-list ideal para um show do Radiohead: talvez por ser uma banda de poucos hits, sempre ficaria algo bom de fora. Bom, o que pretendo com este pequeno texto é, como muitos pela internet afora, apenas descrever um pouco do que foi essa experiência, e rememorar aquele momento único.
Thom Yorke e seus companheiros pisaram no palco da Chácara do Jóquei pontualmente às 22:00 horas e conduziram as trinta mil pessoas presentes a duas horas e vinte minutos de catarse coletiva, uma viagem esperada por muitos ali, há mais de dez anos: dentre estes, alguns seguidores desde Creep, outros desde Ok Computer, ou ainda outros desde que Fake Plastic Trees tornou-se conhecida como a “música do Carlinhos”, não importa. O que realmente importa foi a devoção demonstrada pelo público entregue a completo êxtase, e a performance da banda que construiu uma atmosfera sonora sabendo como só eles conduzir/abduzir todos os presentes.
O show iniciou com uma introdução eletrônica, meio espacial, que o Radiohead vem usando durante a turnê para a promoção de seu último trabalho, intitulado In Rainbows. Nesse momento, a viagem começou e os fãs já sabiam que a espera tinha acabado. Era chegado o momento tão esperado em anos, e muito mais nos últimos três meses, desde que os ingressos foram postos à venda e as datas dos shows foram anunciadas.
A banda subiu ao palco com a batida sincopada e eletrizante de 15 Step, do mesmo modo que no Rio e nas cidades em que o Radiohead passou antes. Famoso por variar bastante o repertório durante suas turnês, o grupo inglês vem iniciando os shows sempre com essa música. Nela já iniciou a interação da banda com o público, com Ed O´Brien saindo de sua posição tradicional, manipulando de joelhos sua pequena parafernália no canto esquerdo do palco, para ir à outra extremidade, junto de Jonny Greenwood. O baixista, Colin Greenwood, nessa música tentou puxar as palmas da plateia, mas a batida é tão quebrada que o público não conseguiu acompanhá-la. Ao finalizar essa música Thom Yorke, agradeceu a recepção do público com um tímido “boa noite”. É, tinha começado, e não se sabia o que viria em seguida.
Na sequência, as não tão antigas, mas já clássicas, There there e The National Anthem, embalaram o público. Na primeira música com os guitarristas na percussão auxiliando Phil Selway na batida tribal da música, era como se o grupo tivesse incorporado o espírito da Nação Zumbi. Foi o primeiro e único momento em que o Radiohead fez o público literalmente quicar. Na segunda música, Jonny Greewood, e seu famigerado rádio analógico, sintonizou uma rádio FM de Campinas, prenunciando para delírio geral que viria The National Anthem.
Até então, o show foi agitado, com o público ainda se recobrando do choque inicial, muitos sem saber se cantavam as músicas ou assistiam à performance da banda aliada aos efeitos do telão e das estalactites luminosas pendentes no palco. A partir da quarta música, Thom Yorke e companhia conduziram os fãs brasileiros a uma viagem sonora. É como se eles dissessem, “ok, nós estamos aqui, embarquem conosco nesta!”, e mandaram uma sequência que ninguém teria imaginado: All I Need, Pyramid Song, Karma Police (primeira a ser cantada em forte coro pela plateia), a singela Nude, seguida da viajante Weird Fishes/Arpeggi, as tensas The Gloaming e Talk Show Host, a ótima e, na minha opinião única música zeppeliana do Radiohead, Optimistic. Nesse momento, uma pequena pausa, ficam no palco apenas Thom Yorke e Jonny Greenwood, com seus violões, e tocam Faust Arp, que,sem orquestração como em In Rainbows, ganhou uma proporção inimaginável para este que escreve (precisarei ouvir mais essa música e prestar atenção em sua letra). Em seguida, vieram Jigsaw Falling into Place e a frenética idioteque, que chacoalhou toda a Chácara do Jóquei, retomando a vibração inicial do show e quebrando um pouco o clima intimista de Faust Arp.
Enganou-se quem pensou que a viagem tinha acabado. O Radiohead quebrou o ritmo acelerado de Idioteque com nada mais nada menos que Climbing up the Walls e Exit Music (for a film) – nesta ninguem se atreveu a cantar junto, o silêncio imperou entre o público –, finalizando o set principal com a mais roqueira de In Rainbows, Bodysnatchers.
Os músicos se retiraram do palco, e quem acompanha a banda sabia que a maior parte do show já havia acontecido, faltavam apenas mais dois bis e tudo estaria acabado. O Radiohead retornou, iniciando o primeiro bis com Videotape, que parecia prenunciar um bloco de músicas intimistas. Na próxima, Paranoid Android, não tão intimista quanto a primeira, é que ocorreu um dos momentos mais memoráveis do show. Além de ter sido cantada a plenos pulmões pelo público, ao terminar, quando a banda já se preparava para tocar a próxima música, os fãs retomaram o trecho final fazendo a segunda voz, o que fez com que Thom Yorke voltasse ao microfone para cantar a sua parte da música. Essa atitude foi ovacionada pela plateia que foi ao delírio com o acorde Lá maior de Fake Plastic Trees, uma das mais esperadas da noite e que não havia sido tocada no Rio. Em seguida, para fechar a sequência clássica, veio Lucky e a belíssima Reckoner, música que quase passa despercebida em In Rainbows, mas que depois de algumas audições ganha proporções inimagináveis na primeira.
A banda se retira novamente, e após alguns minutos para respirar (tanto eles como o público) o quinteto de Oxford retorna para o que seria o último bis da noite. Iniciam com a viajante House of Cards, prosseguindo com You and Whose Army, dedicada irônicamente, como no Rio, aos Yankees. Durante essa música, Yorke cantou com seu rosto colado a uma câmera colocada junto ao piano. A imagem de seu rosto ficava projetada, tanto no telão do palco, como nos das laterais, e, enquanto cantava, Thom Yorke ficava fazendo suas caretas, abusando de seu visual estranho, o que arrancou algumas risadas de público. O Radiohead puxou então, a já esperada, pois eles a tocam praticamente em todos os shows desde Kid A, Everything in its Right Place. Num final extraterreno, a voz de Yorke sendo distorcida pelos ecos e reverbs controlados por Greenwood e O’brien, ecoava dentro das 30.000 cabeças extasiadas naquela Chácara.
Era para ser o final, e muitos já se conformavam, acredito que alguns até já se retiravam do local. Algumas luzes do palco já estavam apagadas, três jogos de luzes já tinham sido abaixados e dois roadies recolhiam alguns cabos quando eis que a banda volta para a incredulidade dos fãs. Um cara na minha frente virou-se e disse, com um sorriso de orelha a orelha, “cara, três bis!”. Era o terceiro bis, sim. O Radiohead retribuía a calorosa recepção brasileira, e, antes de começar, Thom Yorke disse: “adivinhem qual será essa!”. Tocaram então com Creep. Foi mágico ver Jonny Greewood esmurrando sua telecaster na famosa entrada antecipada da guitarra no refrão. Por tudo isso, pode-se dizer com segurança que o show do Radiohead em São Paulo, no dia 22 de março de 2009, foi histórico. Uma aula de energia para bandas que fazem seus shows muitas vezes burocráticos, simplesmente visando cumprir uma agenda. Muitos foram os adjetivos utilizados para traduzir o que foi esse show: apoteótico, grandioso, histórico, etc. Para mim a palavra catarse resume essa experiência. E, com certeza, domingo, Aristóteles sorriu satisfeito lá do Olimpo, vendo ser ainda possível uma experiência catártica, mesmo após mais de 2.000 anos.

A arte de ruminar

Por que a arte ruminar?

Tirei essa ideia de um trecho do prefácio que Nietzsche escreveu para o seu Genealogia da Moral. Bom, pretendo aqui ruminar randomicamente sobre diversos temas tomando como base a literatura e a música. Abaixo segue o comentário de Nietzsche.
"Verdade seja que, para elevar assim a leitura à dignidade de 'arte' é mister, antes de mais nada, possuir uma faculdade hoje muito esquecida (por isso há de passar muito tempo antes dos meus escritos serem “legíveis”), uma faculdade que exige qualidades bovinas, e não as de um homem fim-de-século. Falo da faculdade de ruminar".

Nietzsche, em Genealogia da Moral
Sils-Marie, julho de 1887.
É essa faculdade que eu, homem de início do século XXI, tento recuperar.