quinta-feira, 25 de junho de 2009

O Quinze



Ao abordar uma obra consagrada pela crítica, pelos anos, por sua inegável beleza, gostaria de fugir do óbvio: a questão trágica dos retirantes nordestinos. Tanto que essa questão é tratada em O Quinze não de modo nuclear, mas sim, paralela a outra: a escassez de comunicação que há entre Conceição e Vicente, o abismo que separa a mulher letrada do matuto sertanejo, condição que inviabiliza a união amorosa entre eles, mesmo cada um sabendo do amor que sente pelo outro. O que pretendo abordar é o sentido do número “quinze” em suas diferentes aparições dentro do romance de Rachel de Queiroz.


Apenas para relembrar, de modo sucinto, a questão dos retirantes surge na história de Chico Bento e sua família, que são forçados a procurar outro lugar para viver já que, por conta da seca, Dona Maroca, proprietária da fazenda onde ele trabalha, abriu as porteiras, decidiu desistir de lutar contra a seca liberando o seu gado e seus funcionários a partirem. Chico Bento, vendo-se obrigado a encontrar outro destino, decide ir para o norte, para o Amazonas, porém, esbarra na burocracia e na corrupção: não consegue obter as passagens, que o governo estava dando aos pobres, pois elas estariam sendo vendidas por um político da região.


Então, ele e sua família encaram a seca no que ela tem de mais cruel: decidem atravessar o sertão sob o sol inclemente, vivendo vários episódios extremos como a morte de um filho, intoxicado por comer uma mandioca crua, o desaparecimento de outro durante a viagem, entre outros mais. Ao chegarem à cidade, Duquinha, o caçula, é doado a Conceição, pois se continuasse com eles certamente morreria de desnutrição. Depois de vários percalços Chico Bento consegue a ajuda de Conceição, que lhe dá passagens de navio em direção a São Paulo. Assim termina a saga de Chico Bento e sua família em O Quinze, que constitui um dos planos da narrativa.


O outro é o que gira em torno da relação torta entre Vicente e Conceição. Os dois nutrem amor um pelo outro, não negam isso para si próprios, mas tentam frustrar a expectativa dos familiares que, não são bobos, sabem do amor que há entre os dois. O problema é que no tempo da narrativa há um distanciamento geográfico entre eles: Conceição vive na cidade enquanto Vicente se mantém no sertão. Só se encontram ou quando Vicente à cidade ou quando ela vai visitar sua tia Inaciana fazenda. O narrador menciona que os dois cresceram juntos e que na adolescência chegaram mesmo a namorar. Porém, a distância geográfica é ínfima se comparamos a outra distância que há entre eles: a distância cultural. Dessa distância, Conceição é que tem mais consciência, um abismo entre eles segundo a personagem, o que a deprime em certo momento do romance. Vicente até percebe a existência dessa distância, mas não com a acuidade da moça, afinal, além de iletrado ele é um homem em estado bruto por opção, em contraposição ao irmão que se tornou juiz, o qual ele nutre um sentimento ambivalente, que oscila entre o repúdio e uma admiração ressentida, quase invejosa.


Um episódio contribui muito para essa “falha” de comunicação entre eles: ao encontrar a mulata Chiquinha do Campo de Concentração esta conta a Conceição que Vicente estaria de namorico com a Zefa, filha de Zé Bernardo. A partir daí Conceição passa a tratar Vicente com aspereza, mesmo não tendo certeza se essa história é verdade. Mesmo não havendo nenhum compromisso entre eles, Conceição nutria a convicção de que era correspondida em seu amor, e passou considerar a atenção que Vicente lhe dava como galanteios que ele dispensava a qualquer mulher. A partir desse ponto, eles se perdem e se afastam cada vez mais: Vicente sem saber muito o porquê, chega a tachá-la de arrogante por conta ser intelectualizada; e Conceição com a consciência de que havia um abismo cultural intransponível entre eles, acaba desistindo desse amor.


O título dado ao romance de Rachel de Queiroz, como é bem sabido, refere-se à grande seca de 1915, sofrida pelo povo nordestino, sentida na pele pela própria escritora que se tornou também retirante, indo com sua família viver no Rio de Janeiro. Em um primeiro momento o título remete a essa seca, porém, ao que me parece, serve também de fio condutor do romance, pois surge, mesmo que discretamente, em momentos de decisão ou de ruptura dentro da narrativa.


"E afinal, quinze dias depois, Conceição conseguia arrastar Mãe Nácia, que desolada e chorando, era como uma velha estátua a quem roubam do pedestal, e carregam atabalhoadamente, na confusão de uma mudança feita às pressas."

Essa é a segunda aparição do quinze dentro da narrativa, se considerarmos o título do romance como a primeira, representando o tempo que Conceição levou para convencer Mãe Nácia a deixar o sertão por conta da seca. A senhora, extremamente apegada à sua terra, às suas crias, não se imaginava vivendo em outro lugar. Vemos então que o quinze surge num primeiro momento de importante de ruptura no romance, a decisão de Mãe Nácia em retirar, fugir da seca inclemente.

"O cigarro o envolvia em branco nevoeiro; Vicente foi recordando sua vida de trabalho ininterrupto, desde os quinze anos - trabalho de sol a sol, sem descanso e quase sem recompensa... Quantas vezes não sentira um movimento de revolta, quando via o pai mandar aumentar com custo, quase com sacrifício, a mesada do irmão acadêmico, e dar-lhe extraordinários para festas, para sabe lá que bambochatas de estudantes, disfarçadas em livros e matrículas..."

Nesse ponto do romance, é Vicente que traz à tona o quinze, lembrando que é desde os seus quinze anos que ele trabalha de sol a sol, que dedica toda a sua existência ao labor na fazenda da família, ao contrário do irmão que foi para a cidade estudar se formar em direito para nunca mais voltar. Em meio a tantas dificuldades diante da seca, de companheiros partindo para outros lugares, em meio à morte espreitando cada canto do sertão, Vicente se põe a refletir sobre a sua vida, comparando-a com a do irmão e sentindo-se injustiçado por, a seu ver, não lhe ser dado o mesmo valor que a família dava para o irmão. Imaginando ele ainda que os sucessivos pedidos de dinheiro que o irmão fazia alegando a necessidade de custear os estudos serviam na verdade para custear festas. É então nesse momento que Vicente expressa não apenas revolta, mas certo despeito e inveja do irmão doutor, uma inveja da inteligência dele, que Vicente transporta para Conceição.

"Havia de ser quase um sonho ter, por toda a vida, aquela carinhosa inteligência a acompanhá-lo. E seduzia-o mais que tudo a novidade, o gosto de desconhecido que lhe traria a conquista de Conceição, sempre considerada superior no meio das outras, e que se destacava entre elas como um lustro de seda dentro de um confuso montão de trapos de chita."

Percebemos que aquilo que Vicente reprova e ao mesmo tempo inveja no irmão, deseja em Conceição. Como se conquistá-la fosse um modo de conseguir a inteligência que Paulo havia conquistado também. Vemos que novamente o quinze surge em um momento de tensão e ruptura no romance. É um instante de tomada de consciência e de reflexão sobre si mesmo do personagem Vicente.


A terceira vez que o quinze surge é para descrever o período decorrido para a recuperação de Duquinha, filho de Chico Bento adotado por Conceição.

"Quinze dias compridos e angustiados Duquinha levou para uma melhora sensível. Enfim já se sentava na rede e pegava com as mãos incertas a tigela de leite ou de caldo. E já não olhava a madrinha com a primitiva expressão assustada."

Nessa última aparição, o quinze traz consigo a redenção, a cura do menino que foi confiado a Conceição. Ela devolve a vida ao filho de Chico Bento, e ele de certa forma, devolve a vida a Conceição, que já se conformava em ser uma solteirona, abandonando definitivamente qualquer pretensão em relação a Vicente. É no menino que ela reencontra forças para continuar a viver apesar das adversidades, das dificuldades no trabalho de professora e no Campo de Concentração, além de ser sua companhia contra a solidão com o retorno de Mãe Nácia à fazenda.


Vemos o quanto o título acaba sendo um tipo de fio condutor da narrativa, evocando a seca de 1915 e iluminando momentos importantes da narrativa: a difícil decisão de Mãe Nácia fugir da seca, deixando tudo para trás; o confronto de Vicente consigo mesmo, e o desejo de se tornar um homem culto; e a vida que surge da adversidade, com a recuperação de Duquinha em quinze dias.