terça-feira, 31 de março de 2009

Catarse coletiva


Já dizia Goethe que quando se deseja muito algo o universo todo conspira a favor. O Brasil queria Radiohead e eles queriam o Brasil, o resto ficou por conta do universo. É o que se pode dizer sucintamente sobre a catártica segunda apresentação da banda inglesa no Brasil, em São Paulo, no último dia 22. A respeito de catarse, termo que será recorrente neste texto, utilizo-me da sua acepção, do Houaiss, no que diz respeito à estética aristotélica como uma “descarga de desordens emocionais ou afetos desmedidos a partir da experiência estética oferecida pelo teatro, música e poesia”. Pois é exatamente isso o que aconteceu naquele domingo: uma intensa descarga emocional e de afetos desmesurados provocados pela experiência musical radioheadiana dentro de cada um que ali, naquela chácara.
Eu nunca cheguei a pensar que fossem exageradas as resenhas que já tinha lido a respeito de shows do Radiohead, no exterior, nas quais muitos críticos chegam a comparar o Radiohead ao Pink Floyd pré-Dark Side. Mas, se não cheguei a duvidar da magnitude dos shows dessa banda inglesa, também não tinha uma noção exata dessa experiência. Claro que, na saída, quando todos ainda estavam atordoados, ouvi comentários tanto elogiosos, como lamentosos, por uma ou outra música ter ficado de fora do set-list. Obviamente que eu também pensava, enquanto caminhava em meio à multidão, em uma ou outra canção que eu desejava muito ouvir, mas cheguei à conclusão de que o impacto desse show foi tão grande que compensou qualquer ausência. E, pensando bem, seria difícil chegar a um consenso a respeito de um set-list ideal para um show do Radiohead: talvez por ser uma banda de poucos hits, sempre ficaria algo bom de fora. Bom, o que pretendo com este pequeno texto é, como muitos pela internet afora, apenas descrever um pouco do que foi essa experiência, e rememorar aquele momento único.
Thom Yorke e seus companheiros pisaram no palco da Chácara do Jóquei pontualmente às 22:00 horas e conduziram as trinta mil pessoas presentes a duas horas e vinte minutos de catarse coletiva, uma viagem esperada por muitos ali, há mais de dez anos: dentre estes, alguns seguidores desde Creep, outros desde Ok Computer, ou ainda outros desde que Fake Plastic Trees tornou-se conhecida como a “música do Carlinhos”, não importa. O que realmente importa foi a devoção demonstrada pelo público entregue a completo êxtase, e a performance da banda que construiu uma atmosfera sonora sabendo como só eles conduzir/abduzir todos os presentes.
O show iniciou com uma introdução eletrônica, meio espacial, que o Radiohead vem usando durante a turnê para a promoção de seu último trabalho, intitulado In Rainbows. Nesse momento, a viagem começou e os fãs já sabiam que a espera tinha acabado. Era chegado o momento tão esperado em anos, e muito mais nos últimos três meses, desde que os ingressos foram postos à venda e as datas dos shows foram anunciadas.
A banda subiu ao palco com a batida sincopada e eletrizante de 15 Step, do mesmo modo que no Rio e nas cidades em que o Radiohead passou antes. Famoso por variar bastante o repertório durante suas turnês, o grupo inglês vem iniciando os shows sempre com essa música. Nela já iniciou a interação da banda com o público, com Ed O´Brien saindo de sua posição tradicional, manipulando de joelhos sua pequena parafernália no canto esquerdo do palco, para ir à outra extremidade, junto de Jonny Greenwood. O baixista, Colin Greenwood, nessa música tentou puxar as palmas da plateia, mas a batida é tão quebrada que o público não conseguiu acompanhá-la. Ao finalizar essa música Thom Yorke, agradeceu a recepção do público com um tímido “boa noite”. É, tinha começado, e não se sabia o que viria em seguida.
Na sequência, as não tão antigas, mas já clássicas, There there e The National Anthem, embalaram o público. Na primeira música com os guitarristas na percussão auxiliando Phil Selway na batida tribal da música, era como se o grupo tivesse incorporado o espírito da Nação Zumbi. Foi o primeiro e único momento em que o Radiohead fez o público literalmente quicar. Na segunda música, Jonny Greewood, e seu famigerado rádio analógico, sintonizou uma rádio FM de Campinas, prenunciando para delírio geral que viria The National Anthem.
Até então, o show foi agitado, com o público ainda se recobrando do choque inicial, muitos sem saber se cantavam as músicas ou assistiam à performance da banda aliada aos efeitos do telão e das estalactites luminosas pendentes no palco. A partir da quarta música, Thom Yorke e companhia conduziram os fãs brasileiros a uma viagem sonora. É como se eles dissessem, “ok, nós estamos aqui, embarquem conosco nesta!”, e mandaram uma sequência que ninguém teria imaginado: All I Need, Pyramid Song, Karma Police (primeira a ser cantada em forte coro pela plateia), a singela Nude, seguida da viajante Weird Fishes/Arpeggi, as tensas The Gloaming e Talk Show Host, a ótima e, na minha opinião única música zeppeliana do Radiohead, Optimistic. Nesse momento, uma pequena pausa, ficam no palco apenas Thom Yorke e Jonny Greenwood, com seus violões, e tocam Faust Arp, que,sem orquestração como em In Rainbows, ganhou uma proporção inimaginável para este que escreve (precisarei ouvir mais essa música e prestar atenção em sua letra). Em seguida, vieram Jigsaw Falling into Place e a frenética idioteque, que chacoalhou toda a Chácara do Jóquei, retomando a vibração inicial do show e quebrando um pouco o clima intimista de Faust Arp.
Enganou-se quem pensou que a viagem tinha acabado. O Radiohead quebrou o ritmo acelerado de Idioteque com nada mais nada menos que Climbing up the Walls e Exit Music (for a film) – nesta ninguem se atreveu a cantar junto, o silêncio imperou entre o público –, finalizando o set principal com a mais roqueira de In Rainbows, Bodysnatchers.
Os músicos se retiraram do palco, e quem acompanha a banda sabia que a maior parte do show já havia acontecido, faltavam apenas mais dois bis e tudo estaria acabado. O Radiohead retornou, iniciando o primeiro bis com Videotape, que parecia prenunciar um bloco de músicas intimistas. Na próxima, Paranoid Android, não tão intimista quanto a primeira, é que ocorreu um dos momentos mais memoráveis do show. Além de ter sido cantada a plenos pulmões pelo público, ao terminar, quando a banda já se preparava para tocar a próxima música, os fãs retomaram o trecho final fazendo a segunda voz, o que fez com que Thom Yorke voltasse ao microfone para cantar a sua parte da música. Essa atitude foi ovacionada pela plateia que foi ao delírio com o acorde Lá maior de Fake Plastic Trees, uma das mais esperadas da noite e que não havia sido tocada no Rio. Em seguida, para fechar a sequência clássica, veio Lucky e a belíssima Reckoner, música que quase passa despercebida em In Rainbows, mas que depois de algumas audições ganha proporções inimagináveis na primeira.
A banda se retira novamente, e após alguns minutos para respirar (tanto eles como o público) o quinteto de Oxford retorna para o que seria o último bis da noite. Iniciam com a viajante House of Cards, prosseguindo com You and Whose Army, dedicada irônicamente, como no Rio, aos Yankees. Durante essa música, Yorke cantou com seu rosto colado a uma câmera colocada junto ao piano. A imagem de seu rosto ficava projetada, tanto no telão do palco, como nos das laterais, e, enquanto cantava, Thom Yorke ficava fazendo suas caretas, abusando de seu visual estranho, o que arrancou algumas risadas de público. O Radiohead puxou então, a já esperada, pois eles a tocam praticamente em todos os shows desde Kid A, Everything in its Right Place. Num final extraterreno, a voz de Yorke sendo distorcida pelos ecos e reverbs controlados por Greenwood e O’brien, ecoava dentro das 30.000 cabeças extasiadas naquela Chácara.
Era para ser o final, e muitos já se conformavam, acredito que alguns até já se retiravam do local. Algumas luzes do palco já estavam apagadas, três jogos de luzes já tinham sido abaixados e dois roadies recolhiam alguns cabos quando eis que a banda volta para a incredulidade dos fãs. Um cara na minha frente virou-se e disse, com um sorriso de orelha a orelha, “cara, três bis!”. Era o terceiro bis, sim. O Radiohead retribuía a calorosa recepção brasileira, e, antes de começar, Thom Yorke disse: “adivinhem qual será essa!”. Tocaram então com Creep. Foi mágico ver Jonny Greewood esmurrando sua telecaster na famosa entrada antecipada da guitarra no refrão. Por tudo isso, pode-se dizer com segurança que o show do Radiohead em São Paulo, no dia 22 de março de 2009, foi histórico. Uma aula de energia para bandas que fazem seus shows muitas vezes burocráticos, simplesmente visando cumprir uma agenda. Muitos foram os adjetivos utilizados para traduzir o que foi esse show: apoteótico, grandioso, histórico, etc. Para mim a palavra catarse resume essa experiência. E, com certeza, domingo, Aristóteles sorriu satisfeito lá do Olimpo, vendo ser ainda possível uma experiência catártica, mesmo após mais de 2.000 anos.

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